Que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua vida?
Logo após a profissão de fé do apóstolo Pedro, Jesus começa a dizer abertamente aos seus discípulos que devia ir a Jerusalém e sofrer muito.
Pedro já tinha afirmado que Jesus era o Cristo, o Messias, o Filho do Deus vivo. Jesus além de confirmar o que Pedro dissera, chamou-o de beato por receber esta revelação de Deus e lhe confiou as chaves, constituindo-o “pedra” de fundamento da nova comunidade que pretendia construir. Desde esse instante, dá-se início a esta construção, mas com uma mudança no ministério de Jesus.
Pois, “Jesus começou a mostrar a seus discípulos que devia ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da lei e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia”. É precisamente aqui que começa a segunda etapa da missão de Jesus. Ele apresenta de que modo se apresentará. E um modo nada esperado, completamente sem lógica aos olhos humanos.
Por isso, Pedro enxerga uma contradição entre aquilo que ele mesmo acabou de professar e aquilo que Jesus acaba de anunciar de maneira tão solene. De fato, como pode Jesus, depois de operar tantos prodígios e pregar que veio trazer vida plena, agora falar de sofrimento e de morte? (parece uma derrota). Para os discípulos, isto não é apenas decepcionante, mas significa a queda de um mundo de esperanças. E, por isso, Pedro não quer aceitar este destino de Jesus e se defende como pode, repreendendo-o, protestando.
Certamente, a repreensão de Pedro é a normal reação do homem diante da perspectiva da dor e da morte; mais, é a reação do amigo, que defende o amigo, e que quer protegê-lo de qualquer perigo; mesmo quando, neste caso, Pedro parece ter esquecido que o seu amigo é o Filho do Deus vivo. De fato, ele volta a pensar em Jesus como um messias triunfante no campo político (pensamento da teologia da libertação), para liberar o povo da opressão inimiga.
Mais uma vez, parece voltar atrás, lembra os quarenta dias no deserto, quando Jesus enfrentou Satanás, que lhe propunha tal messianismo terreno, feito de prestígio, poder e riqueza. A tentação diabólica parece representar-se com força nas palavras de Pedro que não queria aceitar o fim doloroso do Mestre.
Assim, Jesus o repreende com muita firmeza. Pouco antes, Ele tinha chamado Pedro de “pedra”, coluna sustentável sobre a qual edificaria a sua Igreja; agora, chama-o de “satanás” (em aramaico significa obstaculador, aquele que impede o caminho, pedra de tropeço, o que fazer cair, tentador) e pede que o mesmo se coloque “no seu lugar” que é aquele de discípulo. Não cabe ao discípulo colocar-se à frente do mestre, para dar-lhe instruções. É o contrário, o discípulo é quem tem que ficar atrás do mestre, confiar a ele sua vida e segui-lo. Por isso, a tradução correta não é afasta-te de mim, mas “vá para trás de mim”, ou seja, ponha-te no teu lugar, seja discípulo, me siga, deixe de me tentar para que eu abandone minha missão salvadora.
Com isto, Jesus deixa claro que embora a confissão de Pedro viesse por revelação de Deus Pai; agora, ele já não está mais falando assim. O que Pedro está fazendo é deixar-se dominar pelos pensamentos humanos: “Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas, sim, as coisas dos homens”, diz Jesus.
Deste contraste de pensamentos, isto é, entre a forma de pensar de Deus e a dos homens, é que o Evangelho suscita questões fundamentais sobre a vida humana: qual é o valor e o significado da nossa vida? A nossa vida terrena é a única vida? Como devemos usar esta vida para nos sentir plenos? O que podemos esperar dela? Devemos nos apegar a ela a qualquer preço e por isso, procurar tirar tudo dela?
A resposta a tais questionamentos é o próprio Jesus quem nos dá. Por meio do seu caminho, Ele mostra que a nossa vida atual não é a única vida, o valor último e mais alto, e esta não tem em si mesma o próprio significado e o próprio fim. Jesus sabe que Deus estabeleceu para Ele um caminho através da rejeição, do sofrimento e da morte, e Ele acolhe este caminho das mãos do Pai. Jesus perderá a sua vida com uma morte cruel e injusta.
Na verdade, Jesus nunca disse que a plenitude da vida indicasse uma vida fácil, tranquila, em meio à riqueza, privilégios, privada de sofrimentos. A sua própria vida não foi assim, nem Ele pôde garantir isso a seus discípulos. Por isso, Ele ensina aos discípulos o seu próprio caminho: “quem perder a própria vida por causa de mim, vai encontrá-la”.
O valor mais alto, ao qual tudo está subordinado, não é a vida terrena, mas a união com Jesus. Esta é preferível a todo o resto. Esta união se manifesta numa ilimitada confiança em Jesus, no esforço de modelar a própria vida segundo o seu exemplo e os seus ensinamentos. Quem na sua vida terrena procurou a união com Ele, pertencerá a Ele também na sua glória. Tomar a cruz de Jesus é estar unido a Ele, e seguindo o seu caminho, provar o que significa plenitude de vida.
Na I leitura, nos é proposta a figura do profeta Jeremias, que viveu profundamente este drama. Do cap. 20, lemos uma espécie de confissão de Jeremias: “Seduziste-me, Senhor e eu deixei-me seduzir; foste mais forte, tiveste mais poder (como um amante decepcionado). Enganaste-me, enrolaste-me. Veja a que ponto cheguei por ter me deixado levar por você. “Tornei-me alvo de irrisão o dia inteiro, todos zombam de mim. Todas as vezes que levanto a voz, clamando contra a maldade e invocando calamidades; a palavra do Senhor tonou-se para mim fonte de vergonha e de chacota o dia inteiro”.
O profeta afirma: “não quero mais lembrar-me disso nem falar mais em nome dele”; mas, ao mesmo tempo, admite: senti, então, dentro de mim um fogo ardente a penetrar-me o corpo todo: desfaleci, sem forças para suportar”. É a sede que nossa alma tem de Deus, nossa carne como terra deserta e sem água. E que provoca uma busca ansiosa desde a aurora como diz o salmista. O fato de seguir o Senhor trouxe grande dificuldades para Jeremias e para Pedro também. Mas, não obstante isso, eles seguiram por causa deste fogo ardente. É interessante como na II leitura, Paulo falando aos romanos e a todos nós cristãos, diz: “exorto a vos oferecerdes em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual. Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, isto é, o que é bom, o que lhe agrada”.
É o convite para que sejamos discípulos que não pensam segundo os homens, mas segundo Deus. Pra sermos autênticos e dizer não aos próprios pensamentos. E de seguir fielmente e firmemente Jesus, mesmo se a cruz é pesada. É um convite a não sermos obstaculadores de seu projeto, mas discípulos que o realizam com grande desejo.
Neste sentido, há uma preocupação atual da Igreja com todos os fiéis nesta época de secularismo, de materialismo, de individualismo, mas de modo especial, com todos os sacerdotes como podemos perceber pelas palavras do cardeal emérito de Milão, Carlo Maria Martini, quando afirmou em 2008 que a inveja é o vício clerical, por excelência, e os outros pecados capitais mais presentes no interior da Igreja são a vaidade e a calúnia. Martini ainda citou o carreirismo na Igreja, onde “cada um quer ser mais que o outro”.
Neste sentido, o Papa Bento XVI, por ocasião do ano sacerdotal, abordou em vários momentos este assunto: “convido os padres e os seminaristas a estimar, no seguimento de São Domingos, o valor espiritual do estudo das verdades reveladas, das quais depende a qualidade do seu ministério presbiteral”. Bento XVI destacou de São Domingos sua renúncia aos privilégios pessoais, frisando que poderia ter conseguido em uma promissora carreira eclesiástica, à qual renunciou, dedicando-se humildemente às tarefas que lhe foram confiadas. “Não seria talvez uma tentação a da carreira, do poder, uma tentação da qual nem sequer estão imunes aqueles que têm um papel de animação e de governo na Igreja?”, perguntou. Bento XVI defendeu que não se pode ser sacerdote visando “fazer carreira” ou “ocupar um alto cargo na Igreja”, apelando a uma vida de serviço aos outros, à imagem de Jesus Cristo.
Em outra ocasião, durante a homilia da celebração eucarística, na Basílica de São Pedro, em que ordenou 15 novos sacerdotes da Diocese de Roma, o Papa criticou “o homem que, pelo sacerdócio, quer ser importante”, repudiando que se possa ter como objetivo, na vida sacerdotal, “a exaltação pessoal e não o servir humildemente Jesus Cristo”. Ele ainda ressaltou que o sacerdote deve “existir para os outros, para Cristo, e assim através dele e com Ele existir para os homens”. Para o Papa, “o único acesso legítimo ao ministério pastoral é a cruz. Essa é a porta”.
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